Na passada sexta-feira, dia 7 de Novembro, decorreu na FCT da Universidade Nova, a conferência “Compromisso para o Crescimento Verde – Mobilidade e Transportes”. A organização levada a cabo pelo Geota e pela UNL, conseguiu reunir um conjunto de oradores que enriqueceram o debate.
O documento, disponível para consulta pública, apresenta a estratégia do governo para o que deverá ser um crescimento sustentável do país. Estranha-se logo na capa, que a ilustração não inclua uma bicicleta, um ícone tantas vezes usado (e abusado) em tudo o que tenha a ver com ecologia, ambiente, eficiência e desenvolvimento sustentável, enfim… tudo o que seja “verde”. Mas a ausência na ilustração, apenas e infelizmente traduz o conteúdo do documento – há apenas duas referências superficiais ao termo “mobilidade suave” no capítulo dos transportes, e a palavra “bicicleta” surge no meio do turismo, apenas neste trecho:
Um turista cuja motivação principal é a natureza procura a tranquilidade, o repouso e a autenticidade e realiza múltiplas atividades culturais, desportivas e de lazer, tais como montanhismo, escalada, passeios a pé, de bicicleta, a cavalo ou de barco, assim como a observação de aves e de outra fauna ou flora.
Ou seja, está claro que nesta estratégia a bicicleta ficou de fora. Ignoram-se assim as directivas da ONU, da União Europeia, o Pacto dos Autarcas, o pacote de Mobilidade do IMT, o plano Ciclando, entre muitas outras recomendações a nível nacional e internacional. O caminho já era apontado num documento da UE com mais de uma década, Cidades para Bicicleta, Cidades de Futuro. Quando a mesma União Europeia avisa que já chega de apostar na rodovia, o governo entende que apostar na promoção do automóvel eléctrico é o caminho a seguir – um caminho que apenas resolve um dos problemas da mobilidade automóvel, o da poluição local (e mesmo esse só em parte, já que a energia tem de ser gerada de alguma forma, nem sempre limpa, a produção dos automóveis eléctricos tem um impacto ambiental bastante elevado, e principalmente ao nível das baterias, cujo ciclo de vida é mais curto que o dos automóveis). O carro elétrico simplesmente desloca os consumos energéticos de fontes primárias, por vezes mais poluentes (motores próprios), para fontes secundárias (centrais de eletricidade) que podem ser igualmente poluentes (p.ex. carvão) ou apresentar novos problemas de custos incalculáveis (p.ex. energia elétrica nuclear importada), a acrescentar a nova fonte de elevado consumo de recursos e poluição que são as baterias, conforme mencionado acima. Congestionamento, custos elevados, mais importações, sinistralidade rodoviária, espaço ocupado, etc, continuam a existir com o automóvel eléctrico. Este tipo de mobilidade eléctrica não precisa de apoio estatal – a indústria automóvel quando estiver preparada irá encarregar-se de a promover. Para além do mais, trata-se de subsidiar a aquisição de veículos que só estão acessíveis a quem tem um poder de compra relativamente elevado, constituindo-se como uma prática socialmente injusta.
Ignora-se o enorme potencial que a bicicleta tem para mudar a pegada ecológica do país. Tendo em conta que 35% das emissões de gases de estufa têm origem no sector dos transportes (e em Lisboa este valor ultrapassa os 40%), estranha-se que num documento com mais de 100 páginas, o capítulo dos transportes ocupe apenas 3. Portugal comprometeu-se recentemente em reduzir as emissões GEE em 40% até 2030. Para atingir estas metas, não basta fazer o chamado “fuel switch” – será necessário alterar profundamente os padrões de mobilidade dos cidadãos. Estamos na cauda da Europa em termos de mobilidade sustentável, sendo dos países com maior dependência no automóvel individual, com quase 90% das deslocações totais feitas neste modo (dados do Eurostat 2012). Mesmo dentro de Lisboa, onde as redes de transportes colectivos estão bem implementadas, a repartição modal do automóvel particular representa quase 60% das deslocações pendulares, mas se considerarmos a Área Metropolitana da cidade, esse valor é ainda mais alto, e as alternativas são significativamente inferiores. As políticas terão de ser concertadas com a promoção do transporte colectivo, mas é precisamente neste campo que a bicicleta poderá ter um peso significativo. Claro que haverá algumas situações em que a bicicleta não dá a melhor resposta. Mas no contexto europeu podemos facilmente observar que a bicicleta tem vindo a conquistar terreno, e a repartição modal que a mesma representa na maioria dos nossos congéneres, é bastante significativa. Gostaríamos de ver objectivos claros e ambiciosos neste documento, que visem uma forte e necessária promoção da mobilidade activa.
O crescimento da bicicleta só será possível e sustentável, se o mesmo representar uma diminuição da repartição modal do automóvel. E tal só será viável tornando este meio de transporte que tantos custos representa para o país, menos apetecível face aos transportes colectivos e aos modos activos. Lamentamos que a iniciativa que permitia que o abate automóvel fosse convertido em títulos de transporte, tenha sido abandonada no OE para 2015 (e que poderia ser alargada à compra de bicicletas). Embora o impacto orçamental de tal medida fosse difícil de prever, era fácil estabelecer um limite para a mesma, como já foi feito no passado no incentivo à aquisição de automóveis eléctricos. Também o problema de possiveis abusos nesta medida (como a “corrida” à compra de veículos antigos), era facilmente contornado garantindo que tal incentivo só seria atribuído a quem fosse proprietário do automóvel a abater há mais de 2 anos, por exemplo. Ainda no OE 2015, o aumento do ISP que tanta contestação tem gerado, faria sentido e ajudaria à sua melhor aceitação se este fosse directamente canalizado para a melhoria dos Transportes Públicos.
No sector do Turismo queremos ver a bicicleta reconhecida pelo potencial que tem: na Europa este mercado já representa mais de 54 mil milhões de Euros anuais, e actualmente a procura de férias em bicicleta supera em larga escala o mercado do Golfe ( que apenas chega aos 16 mil milhões de Euros/ano). Um sector de turismo com futuro deve fazer apostas inteligentes e criativas, procurando soluções apelativas e sustentáveis, complementares à generalidade da oferta disponível em vez de depender principalmente nos benefícios marginais de uma oferta já consolidada e com pouco potencial de crescimento.
Temos repetidamente enumerado as vantagens da bicicleta, que se traduzem em benefícios para o país não só em termos ambientais, mas também económicos, de saúde pública e segurança rodoviária. Os argumentos que alegam a incompatibilidade da bicicleta com o nosso país, já há muito deixaram de fazer sentido. O nosso clima é vantajoso para o recurso à bicicleta (num dos extremos temos Sevilha, uma cidade com um clima bem mais quente que o nosso, onde a repartição modal está já perto dos 10%; do outro lado temos as cidades nórdicas, com muito frio, neve e condições bem adversas, onde os números da utilização da bicicleta nos deixam verdadeiramente envegonhados); o mito do relevo acidentado, quando numa cidade como Berna, na Suiça, já quase de 20% das deslocações são realizadas de bicicleta ou São Francisco – tão parecido com Lisboa mas mais acidentado – onde 10% das deslocações se realizam de bicicleta (vs. 1,2% em Lisboa) ; por fim o mito cultural: em Portugal há 40 anos, a população era muito menos dependente do automóvel, e no entanto rapidamente se mudou de paradigma.
A economia da bicicleta já emprega na Europa, mais de 650.000 pessoas, e se o nº de deslocações feitas por este meio de transporte duplicasse, o número pode ultrapassar um milhão, de acordo com o recente estudo elaborado sobre a matéria pela empresa Transport and Mobility Leuven. Para além das diversas áreas como o cicloturismo e o comércio de bicicletas, tendo em conta que Portugal é um dos maiores produtores de bicicletas e acessórios da Europa, este aspecto não pode ser ignorado, ainda para mais quando as exportações deste sector são bastante significativas na economia do país.
Numa nota adicional, lamentamos também que no PETI3+, os fundos estruturais 2014-2020 de 6,07 mil milhões de euros definidos pelo GTIEVA sejam para as mercadorias nos cinco designados “corredores”, deixando apenas 758 milhões para o TP e dos quais, se retirar o investimento previsto na Linha de CASCAIS (168 M€) e a estação da Reboleira (16 M€), fica-se com o restante para as redes de TP do país para os sete anos, um valor pouco significativo para algo tão importante. A avaliação do impacto ambiental da proposta do GTIEVA/PETI3+ feita pelo LNEC aponta na direcção de diferentes práticas, e assim se vão gastando os fundos que deveriam servir para tornar as cidades sustentáveis, tal como apontam as recomendações da própria UE.
Dificilmente existe um investimento com o mesmo retorno que a bicicleta pode oferecer: as experiências internacionais mostram-nos que o rácio médio é na ordem dos 5 Euros por cada Euro investido. Mas em países como Portugal, onde a utilização é ainda pouco expressiva, esse rácio pode ascender aos 20 Euros de retorno por cada euro investido (Cavil et al. 2008 – Economic analyses of transport infrastructure and policies including health effects related to cycling and walking: a systematic review). A promoção séria da mobilidade em bicicleta só por si representa uma “revolução” com efeitos positivos directos e indirectos duma magnitude imensa e a todos os níveis. Quando analisada em termos comparativos com as outras medidas, representa uma eficiência em termos de custo/benefício com ordens de grandeza várias vezes superior a qualquer uma delas.
Temos de ser mais eficientes e responsáveis com os recursos finitos que temos ao nosso dispor!
Investir na bicicleta não significa gastar mais – é uma oportunidade para gastar menos!
FPCUB – Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta
[…] passeios a pé, de bicicleta, a cavalo ou de barco” para satisfazer os turistas, refere o comunicado da organização que representa o setor do cicloturismo e utilizadores de […]